Eleito com nenhum voto. Pode isso?
O ano era 1945, época em que o Brasil voltava a experimentar o regime democrático após o período ditatorial que ficou conhecido por Estado Novo. Ressurgia a Justiça Eleitoral, sancionada pelo próprio presidente e ex-ditador Getúlio Vargas, por meio do Decreto-Lei 7.586, que já marcava, para aquele ano, eleições diretas para a presidência da República, Senado e Câmara dos Deputados.
As eleições de 1945 foram consideradas por muitos especialistas no assunto as mais livres e limpas da história do País. Isso, porque, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, o comando do País fora entregue ao então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Linhares, após a deposição do presidente Getúlio Vargas, em 29 de outubro daquele ano. Nos Estados, a responsabilidade pela condução do processo eleitoral ficara com os membros do Poder Judiciário, nomeados Interventores Federais.
Em viagem ao Rio de Janeiro, o candidato a deputado federal pelo Partido Social Democrático (PSD) no então Território Federal do Acre, Hermelindo de Gusmão Castelo Branco Filho, não sabia a surpresa que o aguardava, após o encerramento da votação, às 17h45 daquele dia 2 de dezembro de 1945.
Ignorado pelos eleitores de sua própria terra, Hermelindo escreveria seu nome nas páginas da história da política nacional e – por que não dizer? – da Justiça Eleitoral Brasileira como sendo o primeiro parlamentar eleito no País sem qualquer voto. Isso mesmo! Zero voto! Uma estranhíssima situação, mas perfeitamente constitucional, como estabelecia o terceiro Código Eleitoral Brasileiro (Decreto-Lei 7.586) sancionado por Vargas.
O candidato, que também não pôde receber nem o próprio voto, já que estava fora de seu domicílio eleitoral, pegou carona nos 3.775 dos votos obtidos pelo seu colega de partido – Hugo Ribeiro Carneiro. Como só havia duas vagas, e como o partido obtivera muito mais da metade dos votos válidos (5.359) do eleitorado acreano, além de uma sobra de 1.070 votos, Hermelindo ganhou sua Cadeira Federal com a impensável conquista de zero voto.
Mágica? Absolutamente, não! Isso é simplesmente o que determina o nosso sistema de representação proporcional, que vigora desde 1935 (ano da sanção da Lei nº 48 – do Segundo Código Eleitoral Brasileiro). Se um candidato já tem votos suficientes para se eleger, o restante vai para outros candidatos de seu partido. Esse é o chamado Quociente Eleitoral, ao qual se chega dividindo-se o número de votos válidos apurados pelo número de lugares a se preencher em cada circunscrição eleitoral, desprezada a fração, se igual ou inferior a meio, e equivalente a um, se superior. Curioso dizer que, naquela época, os votos brancos eram considerados como válidos.
Hermelindo pode ter entrado para a história, mas sua proeza não foi exclusiva. Ele teve seguidores. No estado de São Paulo, nas eleições de 2002, também para a Câmara dos Deputados, o candidato Tocera, do Partido da Reedificação da Ordem Nacional (PRONA), também parecia não ter chamado a atenção de nenhum eleitor com suas propostas, mas obteve a incrível marca de zero voto ao final da apuração. Nenhum voto! E, nesse caso, nem o dele!! Mesmo assim foi eleito como sétimo representante da legenda, graças à genial oratória de um sujeito baixinho, careca e barbudo, acreano de nascimento e já naquela época nacionalmente conhecido – Enéas Carneiro, personagem que conseguira, na ocasião, uma das mais espetaculares votações da história eleitoral do País: 1.573.112 votos; número suficiente para arrastar à Câmara Federal outros candidatos do partido.
Então, pensemos em uma situação inversa: seria possível um candidato com maior votação não ser eleito? A resposta é “sim”! Basta lembrarmos o caso ocorrido com o candidato Dante de Oliveira, nacionalmente conhecido pela autoria de uma emenda constitucional que levou seu nome e que propunha o restabelecimento das eleições diretas para presidente da República.
Candidato pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) do estado do Mato Grosso a uma vaga na Câmara dos Deputados, nas eleições de 1990, Dante obteve a maior votação (49.889 votos) de seu estado e não foi eleito em razão de seu partido não ter obtido o Quociente Eleitoral, que, naquela eleição para o cargo de deputado federal, fora de 90 mil votos. A Coligação “Frente Popular” (PDT/PCB/PCdoB), pela qual ele concorreu, não obteve esse quociente, mesmo somando todos os votos dos candidatos que estavam concorrendo para esse cargo e os votos atribuídos à legenda de todos os partidos que integravam a coligação.
Seja como for, essas situações (no mínimo, curiosas) proporcionadas pelo nosso sistema eleitoral – o de listas abertas – passam aos eleitores a impressão de uma disputa personalizada, candidato a candidato, e a ideia de que estes são eleitos como em um sistema majoritário, no qual saem vencedores aqueles que conseguirem mais votos.
Na realidade, porém, a coisa não é bem assim. Mas são muito poucos os eleitores que sabem da complexidade do sistema eleitoral brasileiro e da distribuição final das cadeiras. E como na apreciação desse tema da Reforma Política, agora, em 2015, manteve-se esse mesmo sistema de votação proporcional para deputados e vereadores, corremos o risco de termos ainda muitos Hermelindos e Toceras no Parlamento Brasileiro.
Publicado em 16/10/15