O alistamento eleitoral na Primeira República
Quatro dias após a Proclamação da República, ou seja, em 19 de novembro de 1889, o Decreto nº 6 do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil (com Z, mesmo), determinava, em seu artigo 1º: “Consideram-se eleitores, para as camaras geraes, provinciaes e municipaes, todos os cidadãos brazileiros, no gozo dos seus direitos civis e politicos, que souberem ler e escrever.”
Tal Decreto, que também estabelecia o Ministério do Interior como responsável por todos os procedimentos eleitorais, confirmava um dos aspectos mais polêmicos da Lei Saraiva (1881) – primeira lei eleitoral do País – estendendo, para o período republicano, uma das situações mais complexas da história dos sistemas eleitorais do Brasil – a relação entre analfabetismo e eleições.
Até a publicação da Lei Saraiva, redigida pelo grande jurista Rui Barbosa, a qualificação dos eleitores seguia estritamente a Constituição de 1824, ou seja: para ser eleitor, o cidadão (sexo masculino) tinha que ter mínimo de 21 anos, se casado, ou clérigo, bacharel formado ou militar de alta patente, e mínimo de 25 anos se solteiro. Tinha que comprovar reputação ilibada e renda mínima anual de 100 mil réis (caso dos votantes de paróquia) ou 200 mil réis, no caso dos eleitores de província. Esse era o chamado “voto censitário”. Além disso, deveriam ser livres (escravos libertos ou filhos de escravos nascidos livres também podiam votar).
A partir da Lei Saraiva, porém, mudanças significativas passaram a reger a qualificação eleitoral. O valor da renda anual mínima passou a 200 mil para todos os eleitores e – o mais impactante – o alistamento e o voto ficaram proibidos aos analfabetos.
Num período em que cerca de 85% dos brasileiros não sabiam ler nem escrever e no qual o ensino era praticamente restrito às elites, a proibição do voto aos analfabetos reduziu o eleitorado brasileiro a basicamente 1,5% em relação à população. A delimitação do eleitorado parecia ser ponto essencial no controle dos pleitos.
Encerrado o período imperial, os primeiros governos republicanos mantiveram a proibição do voto aos analfabetos. Com isso, as legislações subsequentes a 1889 passaram a exigir que, no ato do alistamento, o eleitor solicitasse sua inscrição eleitoral por escrito e de próprio punho. Para comprovar que a escrita era mesmo do eleitor, deveria haver uma testemunha que também se manifestasse na mesma petição, atestando serem verdadeiras a letra e a assinatura do solicitante.
O Decreto nº 200-A, de 8 de fevereiro de 1890, determinava o método de qualificação dos eleitores. O alistamento era feito pelas comissões distritais dos estados, geralmente compostas pelo juiz de paz mais votado do distrito, pelo subdelegado da paróquia e por um eleitor do distrito indicado pelo presidente da Câmara ou da Intendência Municipal. O trabalho dessa comissão era revisado pelas comissões municipais, compostas pelo juiz municipal do Termo, pelo presidente da Câmara ou Intendência Municipal e pelo delegado de polícia. O controle do alistamento eleitoral pelos governos estaduais ao longo da Primeira República (1889-1930) acentuou ainda mais o índice de abstenção nas urnas, uma vez que a influência dos partidos políticos dominantes (geralmente os Partidos Republicanos) impedia, não apenas o voto aos analfabetos, mas também aos desafetos políticos, fator que vai gerar inúmeros conflitos legais até a criação da Justiça Eleitoral, em 1932.
Analfabetismo – desafio constante
O analfabetismo sempre foi um grande problema no Brasil. No entanto, o que se percebe é que, a partir de 1881, quando o voto passa a ser proibido para os analfabetos, poucas foram as iniciativas de combater esse mal no país.
Mesmo após a primeira Constituição Brasileira, em 1824, quando, pela primeira vez, o direito à instrução primária e secundária é concedido à sociedade, e mesmo após as primeiras medidas que visavam à implantação de um sistema de educação pública, em 1850, as iniciativas mais significativas de combate ao analfabetismo só começam a aparecer a partir de 1947, com o lançamento da Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos. Em 1958 acontece a Campanha Nacional de Extinção do Analfabetismo. Em 1961 é lançada a primeira Lei de Diretrizes na Educação Nacional. Em 1964 é estabelecido o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), ação que perdura sem interrupção até 1985.
Foi necessário o tempo de um século para que a relação analfabetismo X eleições encontrasse algum equilíbrio. Isso acontece a partir da Constituição Federal de 1988, quando os analfabetos passam a ter novamente o direito ao alistamento e ao voto.
Berenice Sobral
Seção de Memória Eleitoral
17 de julho de 2023